terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A MORTE DA GARRAFA DE COINTREAU

No ano de 1999 eu morava em terras galegas, mais precisamente em uma aldeia que fica cerca de trinta minutos de Santiago de Compostela. O nome dessa aldeia é Trece, uma aldeia de agricultores, lugar onde vive parte de minha família, lugar onde nasceu meu pai.

Bebe-se bastante por aquelas bandas, e os homens têm o costume de antes do almoço tomar uma dose de "susto no fígado" na taberna mais próxima. Elas ficam cheias, quase todas servem as tradicionais "tapas".

Num domingo deste ano fui beber uma dose de vermute com meu tio antes de comer. Lembro perfeitamente que era o dia em que matamos o porco pela manhã, e o bicho já estava devidamente cortado nos esperando para o banquete. Fomos, bebemos o aperitivo, e voltamos famintos pensando no suíno. Comemos como animais, bebemos duas garrafas de vinho, tiramos meia hora de sesta, e nos levantamos para o café.

Neste dia pedi para meu tio que o café também fosse em uma taberna, e ele achou uma boa. Entramos no carro, passamos por umas cinco pequenas aldeias, e vi que tomávamos a direção da costa. Perguntei:

- Tá me levando pra onde? Quero só um café.

- Vamos beber o café na bodega do Ramon, não o vejo há anos... Já estamos chegando.

E continuou a explicar-me pelo caminho quem era o homem, tratava-se de um amigão seu de tempos passados.

Chegamos no local, era uma casa. É muito comum montar uma taberna na parte debaixo da casa onde se mora. Este era o caso do gorducho Ramón, morava e trabalhava nesta bela casa de dois andares. Ao entrarmos pela porta levei um susto, Seu Ramón deu um soco de bárbaro no balcão ao ver meu tio, em seguida vieram os urros e abraços. Fui logo apresentado ao boa praça do Ramón, lembrava-me o Sancho Pança. Meu tio pediu um café e uma dose de conhaque, e eu um café com cointreau. Seu Ramón espantou-se quando pedi o licor, já que ninguém troca um belo conhaque do país junto com café. Não havia cointreau na prateleira, então ele explicou:

- Tenho uma garrafa de cointreau no depósito. Está lacrada há vinte e seis anos, vou buscá-la.

E eu:

- Não precisa se incomodar, bebo conhaque mesmo.

- De jeito algum, a hora do cointreau chegou. Quando comprei nunca imaginava que a pessoa que iria inaugurá-la vinha de outro país, e ainda por cima nem estava nascido.

Eu tinha vinte e três anos, já havíamos falado sobre isso.

Chega o homem todo sorridente com a garrafa na mão. Tira a poeira da bichinha, e depois a virgindade da mesma. Bota dois copos no balcão e diz:

- Vou beber contigo, este não é um momento qualquer.

E meu tio:

- Então cancele o meu conhaque, Ramón, vamos todos beber café com cointreau.

Que momento! Conversamos por uma hora, e depois me despedi, já que no dia seguinte voltaria para o meu Brasil.

- Voltas amanhã? Então toma, a garrafa é tua!

Não aceitei, talvez por ainda não entender direito as normas dos boêmios mais cascudos. Disse que já estava com as malas prontas, muito cheias, não cabia nem uma agulha mais. E era verdade. Desculpei-me, já percebendo a indelicadeza que fizera, com uma promessa:

- Vamos fazer um trato. Assim que voltar novamente para a Espanha acabamos com ela aqui mesmo, será um forte motivo para lhe visitar. Dito isso, fui embora, sem mais delongas.

Depois de sete anos retornei para ficar uns dias com a família. E como na outra vez, no dia anterior da minha volta, pedi para que meu tio me levasse à taberna do velho Ramón. Ele concordou imediatamente, mas para minha suspresa disse que não passara mais por lá.

Ao chegar fomos logo abrindo a porta da casa, e para nossa surpresa havia uma família almoçando, o bar não estava mais lá. Acontece que reconheci prontamente o barrigudo na ponta da mesa, era o Ramón. Ele fechara as portas do seu pequeno comércio, e fez uma sala de jantar no local. Ficou imensamente feliz com nossa presença, não acreditando que eu estava ali. Queríamos ir embora para não atrapalhar aquela hora sagrada , mas fomos impedidos pelo velho Sancho Pança. Chegou a nos ameaçar com seus terríveis socos na coitada da mesa. Achamos melhor ficar, e fizemos a escolha certa, já que comemos como reis. Depois, olhando pra mim com um sorriso no canto da boca, saiu da mesa. Tarda um pouquinho e vem com a garrafa de cointreau, erguida com os dois braços como se fora um troféu, e dando uma gargalhada medieval.

- Não bebi nem um gole desde então. Já vi que posso acreditar nos brasileiros. Vamos beber!

Foi outra festa. Bebemos de tudo, não só o licor. Antes que eu partisse deu-me a garrafa (ainda havia metade do líquido), e desta vez a trouxe comigo.



Domingo passado, dia 4 de janeiro, bebi a última dose desta garrafa que me rendeu uma bela história na vida. Mas não bebi à toa. Neste mesmo dia 4, o velho e carinhoso Ramón completou 85 anos de vida. Apreciei com muito gosto até o último gole, ao telefone, com o Seu Ramón do outro lado da linha, surpreso, e sem esconder a emoção.

Parabéns, seu Ramón, saúde pra ti.

7 comentários:

Dudu disse...

História linda!

Pqp!!!

Anonymous disse...

Otima historia
adoro ler as historias dos verdadeiros bohemios

Eduardo Goldenberg disse...

Que bonita história, garoto! Emocionante, até. Um beijo.

Szegeri disse...

Felipinho, meu irmão: quem inventou você???

carlinhos disse...

cara, eu amo cointreau, e ler essa história linda com ele só me faz ter mais certeza de uma coisa: só ele pra nos proporcionar esses momentos únicos na vida!! parabéns!!

p.s. tás linkado.

Juliano disse...

Bela história de vida!

Anonymous disse...

Simplesmente a historia mais bonita que ja li,gostaria de ter conhecido ele tbm,forte abraço.