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sexta-feira, 8 de junho de 2012

A FERA DA URCA

[11 de junho de 1962, segunda-feira. Rua São José, centro da Guanabara]


- Corre logo, Luís! Tô me molhando toda, tá uma chuva danada.

- Estou indo mulher, se preocupe com as poças para não acabar com essa meia-calça que você me encheu pra comprar.

Um minutinho depois...

- Ah, que bom que chegamos, amor. Vamos na praça do Farias!

- Tá bom, mulher.

Acomodam-se e prontamente chega o Farias.

- Boa noite sr. Luís. Boa noite sra. Catarina.

- Eu quero o meu Blood Mary...

- Certo madame. Sr. Luís, já trago sua garrafa de uísque.

- Obrigado Farias.


Toda a segunda-feira era a mesma coisa, um biricutico no bar Glorioso, no centro da Guanabara. Para o sr. Luís era de praxe, para sua mulher nem tanto. Ela era fã do programa Balança mais não cai que passava na rádio Nacional e ficava muitas vezes coladinha no valvulado ouvindo seu ídolo Paulo Gracindo. Portanto, quando isso acontecia seu marido bebia só. Luís adorava, pois sua senhora falava pelos cotovelos.

A cidade estava em polvorosa por causa da Copa do Mundo, e os bares lotados de homens querendo papear sobre o escrete nacional. O Brasil ganhara no dia anterior da Inglaterra por três tentos a um, com dois de Garrincha e um de Vavá, e não se falava em outra coisa. Luís não sentava na praça do Farias, só quando estava com a mulher. Farias era um garçom muito calado e não gostava de futebol, mas a dona Catarina o achava elegante. Luís sentava com o Duarte, que era espalhafatoso e falava da seleção. Chegava a gargalhar com ele.

Luís era um ourives conhecido e bem sucedido. Frequentava os bares, tinha muitos clientes e gostava de mulheres. Ele tinha a sua, a Catarina, mas andava sempre com uma moça diferente para o distrair. Catarina cuidava da casa em que moravam, na Urca, e andava somente pelo bairro. Tinham uma relação mais de aparência do que outra coisa. Dentro das quatro paredes quase nada acontecia e o carinho entre eles apenas aparecia para a sociedade, quando estavam  juntos em eventos. Mas Luís sempre expunha em excesso sua superioridade, chegando em alguns casos a destratar sua senhora em público. E ela coitada, sempre abaixava a cabeça nessas horas. Resumindo, ela tinha um cotidiano no bairro, saindo com ele poucas vezes, e o sr. Luis todos os dias tinha que fazer sua farrinha antes de chegar em casa.

Alguns dias depois, Catarina contraiu uma tosse temida, que tinha cara de futura tuberculose. Não podia sair de casa. O médico de confiança de Luís estava em Buenos Aires, o que o deixou de calças arriadas. Sem saber a quem recorrer, deu uma passada no Glorioso após fechar sua oficina, na rua do Rosário, para amaciar o gogó e pensar um pouco. Comentou sobre a mulher com o Duarte, que rapidamente chamou o Farias. Farias tinha um irmão médico, especialista em tosses, e poderia ajudar. Então o calado garçom tomou nota do endereço do ourives para dar ao gêmeo. Sim eram irmãos gêmeos. No dia seguinte pela manhã estava o doutor Humberto na Urca, para tratar de Catarina. Constatou realmente que havia sério risco de tuberculose e recomendou que Luís saísse de casa por duas semanas para que não houvesse risco de contaminação. Luís trabalhava num sobrado espaçoso, que tinha um cômodo confortável onde poderia ficar sem problemas por este tempo. Estava um pouco preocupado com a mulher, ligaria pra ela três vezes ao dia , mas ao mesmo tempo radiante por ter quinze dias de liberdade. Seriam realmente dias de esbórnia completa, sumiria dos bares e ficaria apenas em prostíbulos ou em sua oficina com outras "damas".

Catarina, que era mandada pelo marido mas não era besta, estava de armação. Tinha 42 anos de idade e era casada há 22 anos. Tinha de tudo dentro de casa, menos a felicidade que só um companheiro pode oferecer. Depois de muito matutar, resolveu perder o medo e agir. Era certo que se ficasse esperando por Luís morreria sem os calores que uma mulher de seu porte necessitava. Humberto ganhou um dinheiro para inventar a doença que a mulher estava fingindo para o marido. Logo no segundo dia de tratamento, o médico levou seu irmão para ver Catarina. Estava tudo combinado. Conversa não era o forte de Farias, que pegava no serviço às 18hs, e ficou quinze dias praticamente morando na Urca. Fornicavam o dia todo, com pausas para beber algo e fazer necessidades. Comiam pouco. O Garçom era calado mas viril e dava conta da inquieta Catarina, que estava em dias de descobertas e queria fazer de tudo. Ela começou a chamá-lo de Possesso. Lá pelo quarto dia, o Humberto entrou na jogada, e o negócio virou bacanal. Eram gêmeos, cutucando a agora feliz Dona Catarina por várias horas. Ela era incansável, berrava como uma cabra, suava como uma cerda e pulava como uma macaca. Por causas destas características, os gêmeos lhe deram a alcunha de Fera da Urca. Nestes quinze dias, quatro homens ajudaram no "tratamento": Farias, dr. Humberto, Neto (o porteiro do prédio) e o Duarte, que também estava no esquema. Ela ficou satisfeita e descobriu um mundo novo neste curto espaço de tempo. Era definitivamente outra mulher, um pássaro fora da gaiola, para sempre.

Após a época da enfermidade, o casal voltou ao cotidiano das segundas no Glorioso. Dr. Luís logo agradeceu ao Farias pela indicação do irmão, passando a gostar de sua praça e lhe agraciar com generosas gorjetas. Mas sua imponente figura, ao menos neste bar, já não botava respeito. Todos no Glorioso, do dono aos copeiros, ficaram sabendo do tratamento de sua senhora. Ele passou a ser conhecido nas internas como Mister C, ou apenas cornão.


Catarina e Luís em raro momento de carinho no Glorioso.



Dona Catarina foi corna a vida inteira, e seu homem um corno de primeira viagem que viria a se tornar um corno veterano ao longo do tempo com outras doenças de sua mulher. Luís morreria sem conhecer a Fera da Urca, sempre achando que teve esposa fiel. Catarina sabia que era traída, nunca saiu da Urca, e fez meio mundo conhecer seu bairro.

Até.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A MORTE DA GARRAFA DE COINTREAU

No ano de 1999 eu morava em terras galegas, mais precisamente em uma aldeia que fica cerca de trinta minutos de Santiago de Compostela. O nome dessa aldeia é Trece, uma aldeia de agricultores, lugar onde vive parte de minha família, lugar onde nasceu meu pai.

Bebe-se bastante por aquelas bandas, e os homens têm o costume de antes do almoço tomar uma dose de "susto no fígado" na taberna mais próxima. Elas ficam cheias, quase todas servem as tradicionais "tapas".

Num domingo deste ano fui beber uma dose de vermute com meu tio antes de comer. Lembro perfeitamente que era o dia em que matamos o porco pela manhã, e o bicho já estava devidamente cortado nos esperando para o banquete. Fomos, bebemos o aperitivo, e voltamos famintos pensando no suíno. Comemos como animais, bebemos duas garrafas de vinho, tiramos meia hora de sesta, e nos levantamos para o café.

Neste dia pedi para meu tio que o café também fosse em uma taberna, e ele achou uma boa. Entramos no carro, passamos por umas cinco pequenas aldeias, e vi que tomávamos a direção da costa. Perguntei:

- Tá me levando pra onde? Quero só um café.

- Vamos beber o café na bodega do Ramon, não o vejo há anos... Já estamos chegando.

E continuou a explicar-me pelo caminho quem era o homem, tratava-se de um amigão seu de tempos passados.

Chegamos no local, era uma casa. É muito comum montar uma taberna na parte debaixo da casa onde se mora. Este era o caso do gorducho Ramón, morava e trabalhava nesta bela casa de dois andares. Ao entrarmos pela porta levei um susto, Seu Ramón deu um soco de bárbaro no balcão ao ver meu tio, em seguida vieram os urros e abraços. Fui logo apresentado ao boa praça do Ramón, lembrava-me o Sancho Pança. Meu tio pediu um café e uma dose de conhaque, e eu um café com cointreau. Seu Ramón espantou-se quando pedi o licor, já que ninguém troca um belo conhaque do país junto com café. Não havia cointreau na prateleira, então ele explicou:

- Tenho uma garrafa de cointreau no depósito. Está lacrada há vinte e seis anos, vou buscá-la.

E eu:

- Não precisa se incomodar, bebo conhaque mesmo.

- De jeito algum, a hora do cointreau chegou. Quando comprei nunca imaginava que a pessoa que iria inaugurá-la vinha de outro país, e ainda por cima nem estava nascido.

Eu tinha vinte e três anos, já havíamos falado sobre isso.

Chega o homem todo sorridente com a garrafa na mão. Tira a poeira da bichinha, e depois a virgindade da mesma. Bota dois copos no balcão e diz:

- Vou beber contigo, este não é um momento qualquer.

E meu tio:

- Então cancele o meu conhaque, Ramón, vamos todos beber café com cointreau.

Que momento! Conversamos por uma hora, e depois me despedi, já que no dia seguinte voltaria para o meu Brasil.

- Voltas amanhã? Então toma, a garrafa é tua!

Não aceitei, talvez por ainda não entender direito as normas dos boêmios mais cascudos. Disse que já estava com as malas prontas, muito cheias, não cabia nem uma agulha mais. E era verdade. Desculpei-me, já percebendo a indelicadeza que fizera, com uma promessa:

- Vamos fazer um trato. Assim que voltar novamente para a Espanha acabamos com ela aqui mesmo, será um forte motivo para lhe visitar. Dito isso, fui embora, sem mais delongas.

Depois de sete anos retornei para ficar uns dias com a família. E como na outra vez, no dia anterior da minha volta, pedi para que meu tio me levasse à taberna do velho Ramón. Ele concordou imediatamente, mas para minha suspresa disse que não passara mais por lá.

Ao chegar fomos logo abrindo a porta da casa, e para nossa surpresa havia uma família almoçando, o bar não estava mais lá. Acontece que reconheci prontamente o barrigudo na ponta da mesa, era o Ramón. Ele fechara as portas do seu pequeno comércio, e fez uma sala de jantar no local. Ficou imensamente feliz com nossa presença, não acreditando que eu estava ali. Queríamos ir embora para não atrapalhar aquela hora sagrada , mas fomos impedidos pelo velho Sancho Pança. Chegou a nos ameaçar com seus terríveis socos na coitada da mesa. Achamos melhor ficar, e fizemos a escolha certa, já que comemos como reis. Depois, olhando pra mim com um sorriso no canto da boca, saiu da mesa. Tarda um pouquinho e vem com a garrafa de cointreau, erguida com os dois braços como se fora um troféu, e dando uma gargalhada medieval.

- Não bebi nem um gole desde então. Já vi que posso acreditar nos brasileiros. Vamos beber!

Foi outra festa. Bebemos de tudo, não só o licor. Antes que eu partisse deu-me a garrafa (ainda havia metade do líquido), e desta vez a trouxe comigo.



Domingo passado, dia 4 de janeiro, bebi a última dose desta garrafa que me rendeu uma bela história na vida. Mas não bebi à toa. Neste mesmo dia 4, o velho e carinhoso Ramón completou 85 anos de vida. Apreciei com muito gosto até o último gole, ao telefone, com o Seu Ramón do outro lado da linha, surpreso, e sem esconder a emoção.

Parabéns, seu Ramón, saúde pra ti.